Quinta feira. Poderia ser mais uma como todas as outras que vivi, mas essa deveria ter vindo anunciada e marcada com um círculo vermelho no calendário, sinalizando a chegada da grande profecia tão aguardada.Levanto-me como de costume. Às 06h o relógio toca e sei que o recurso soneca não pode se deitar ao meu lado. É preciso começar o dia, e se existe mesmo o tal milagre da manhã descrito no livro que tanto me recomendaram, eis aqui o meu: fazer as horas renderem mais do que 60 minutos cada. Dizem ainda que é preciso meditar ao menos 10 minutos para que o bom humor matinal perdure. Como a essa altura o visor digital já sinaliza 06h20, pulo direto para o Namasté final durante o banho mesmo, enquanto passo o condicionador por cima do shampoo que insiste em não desgrudar dos meus fios de cabelo.
Corro para a cozinha praticamente levitando pelo caminho para que o toc toc dos meus sapatos não acorde as meninas e eu possa ao menos coar o café sem que a mão direita ou a esquerda esteja presa ao bumbum de alguma delas emaranhadas em meu colo. Jamais idealizei ser mãe, mas pareço ter gostado tanto do título que quis emplacar o bicampeonato com somente um ano de diferença entre as duas.
Quando a torradeira pronuncia seu plim, adentra ao recinto meu marido com Lívia, a herdeira mais nova em seu colo, e logo atrás chega Clarice, a mais velha. Me olham com cara de zumbis esfomeados, todos com seus cabelos bagunçados pelas batalhas que travaram bravamente com seus travesseiros. Espio novamente os ponteiros. 07h10. Como aconteceu esse avanço de tempo? Engoliram meus minutos sem mastigá-los? Não me alongo nesse raciocínio, pois querer achar a resposta de como o tempo correu tanto é o mesmo que heroicamente discorrer se a origem está no ovo ou na galinha. Por falar em ovos, preciso coloca-los para cozinhar.
Faço uma pausa mental. Quinta feira, 11 de Abril. Lembro que é o aguardado “mesversário” de Lívia. Seis meses, praticamente a maioridade do bebê, a alforria do leite materno exclusivo. No lugar de carteira de motorista, o pequeno ser é condecorado com sua primeira fruta e sua primeira papinha. Meus olhos se enchem de lágrimas ao mesmo tempo em que se lançam sobre a fruteira na tentativa de vislumbrar o prêmio que a ela irei outorgar. Vejo então a banana nanica, macia, suculenta, docinha, tudo que parece tornar mais fácil a conquista do paladar, e que cá entre nós, parece que fará menos bagunça também. O médico disse que não deveria dar essa variedade por ser mais forte, mas confesso que era a única do reino das bananas que morava em minha fruteira e meu cérebro então prefere processar a opção de que o que não mata, engorda.
Sento minha nova emancipada cuidadosamente em seu novo trono, o cadeirão de alimentação, na tentativa de fazer desse ato algo tão emocionante e grandioso quanto fiz com Clarice. Ensaio palavras honrosas, mas os violinos e a pompa do momento são emudecidos bruscamente pelo pronunciamento que enfim é declarado a plenos pulmões:
– Mamãe, eu não quero mais fralda. Vou fazer xixi no penico. – anunciou a primogênita.
Minha cabeça rodopia. Duas emancipações simultaneamente? De novo o raios do misterioso hiato de tempo cutuca meu ombro perguntando quem diabos acelerou os ponteiros. Papinha,calcinha… Respiro. Abraço minhas crias dando um beijo em cada, tomando cuidado para as raspas de banana não voarem da colher que seguro no ar com uma das mãos. Penso que elas estão crescendo rápido e às vezes não tenho tempo de notar. Sinto orgulho por elas, mas sinto também saudade antecipada por mim. Fico presa no buraco negro cronológico que engole a vida, os dias e vários dos meus segundos. Ele come meu tempo, tal qual Lívia agora come a fruta de casca amarela com pintinhas pretas.
De repente uma tosse e um vômito me trazem de volta ao presente. Arranco rapidamente a engasgada caçula da cadeira dando tapinhas em suas costas com culpa e rezando para que eu não tenha escolhido a alternativa errada sobre ganhar quilos ou partir dessa para uma melhor ao optar pela maldita banana nanica, que de pequena parece ter só o nome.
– Da próxima escolho a prata, essa sim deve ser valiosa. – juro a mim mesma em voz alta, ciente de que se ela sobreviver irei quebrar essa e outras promessas maternas infinitas vezes mais.
Com a blusa coberta de regurgito de papa e leite coalhado, um barulho de água caindo toma novamente meu ar. Se eu fosse asmática já teria tido um piripaque. Agora é Clarice que deixa escapar seu primeiro xixi perto da porta, exatamente por onde meu marido passa pisoteando sem notar, entretido com o jornal que acabara de ser entregue. Olho incrédula para ele e minha atenção resvala sobre a manchete estampada em letras tão enormes, que só podem anunciar algo mais importante que toda a explosão que me circunda: “Brasileiro demora mais de um ano para limpar seu nome”. Finalmente expiro o ar aliviada. Mesmo vivendo em meio ao caos, da minha casa e do país, ao menos meu nome continua limpo e a salvo nesta manhã. Por sorte vou limpar minha blusa e o chão antes mesmo que muitos conterrâneos, alguns bacanas e outros bananas, consigam ter de volta seu crédito na praça para comemorarem o próximo aniversário.