Sentada na areia molhada, sentindo as ondas morrerem em seus pés, ela mais uma vez despediu-se do mar. Gostava de admirá-lo e acalmar-se com o vai e vem das águas, embora ficasse sempre à margem, sem se despir, cercada por pudores. Tinha uma ligação com aquela imensidão salgada que não sabia explicar de onde vinha, mesmo que nunca se convidasse para um mergulho. Ficava ali só a sentir, a olhar, deixando a marola silenciar os pensamentos que a corroíam. Queria ter a coragem de se afundar nele, deixar a alma ser lavada. No entanto, quando tinha que deixá-lo, o desejo ficava para uma próxima vez. De lembrança, carregava sempre em seu pulso, escondida entre um emaranhado de pulseiras e adornos para que ninguém pudesse ver, uma pequena tatuagem de âncora que fizera ainda adolescente, no único ato de rebeldia e verdade consigo mesma. Decidiu gravar em si para nunca esquecer que no profundo se fixava, sustentava-se. Secretamente selou na pele esse encontro que um dia teria.
Não queria ir embora, mas era noite de domingo e as obrigações da vida que a aprisionavam a chamavam de volta. Outra vez deixou seu triste até logo. Pela estrada, o coração encolheu à medida que os quilômetros seguiram, no constante paradoxo preso dentro de si. O ter que ir era tão esmagador quanto o não saber para onde seguir. Queria ficar, mas não podia viver só daquele ponto no qual a vida encontrava-se em suspenso. Se fosse para partir, que fosse para algo que fizesse o coração saltitar, e não para viver mais do mesmo.
Já em casa, abriu a porta do apartamento e acendeu as luzes. Tudo quieto e solitário como havia deixado. Com os chinelos carregando resquícios do seu paraíso particular, encaminhou-se para cozinha. Vasculhou a geladeira com o olhar, tentando encontrar algo para comer. Tinha fome, mas não sabia bem do quê. Talvez fosse mais um hábito de fazer o alimento preencher o vazio que sentia por dentro. Sempre fora assim. Pegou coisa qualquer e foi para o quarto, donde saiu somente quando o despertador implacável indicou quem manda no tempo.
No escritório, mais uma segunda-feira como todas as outras. Café com amenidades para começar, reunião de pauta, metas impossíveis, corda no pescoço. Sentia-se meio blasé em relação ao ofício, mas o que poderia fazer? Precisava de dinheiro para se sustentar, para que tivesse a chance de ver de novo seu amigo mar. Não trabalhava por prazer, os cifrões que a prendiam. Para ser sincera consigo mesma, nem bem sabia o que desejava realmente ter como profissão. Acostumara-se a agir conforme o que esperavam dela. A adolescente estudiosa que cursou a faculdade que disseram ser a mais promissora, falou as línguas que definiram que ela precisava falar, calçou os saltos altíssimos que mais combinavam com seu título. Ansiava mesmo era ter rodado mundo, conhecido pessoas, colecionado memórias. Queria ter vivido, sem amarras. Mas o excesso de responsabilidade cortou suas asas e fixou seus pés no chão. Da criança que surfava pranchas imaginárias, virou a adulta que deixou de sonhar e foi fazer. Escolheu o ter em vez do ser. Construiu uma carreira sólida, ingressou no melhor escritório da região, apertou-se em saias-lápis.
Dada a hora do almoço, pegou a mesma salada e a porção calculada de proteína que se come quando é o primeiro dia útil da semana e acredita-se que desta vez a dieta irá funcionar. Sua real intenção era comer algo que esquentasse os órgãos por dentro em vez daquele insosso prato de folhas geladas, porém havia incutido em si o lema de que a força de vontade sempre seria maior que a necessidade da mente. Era magra, mas sempre achava que poderia ser melhor. Parecia certo nunca estar tudo bem em sua relação com o corpo. Acomodou-se na mesa mais do canto cutucando a comida displicentemente sem o menor interesse em ingeri-la. Odiava fazer tudo por obrigação, mas ressignificava essa rebeldia com dizeres de triunfo em ser saudável e disciplinada. Ficou ali só a esperar o tempo passar até que o visor do celular acomodado ao lado do prato acendeu e interrompeu esse hiato: “encontro da firma no final da tarde.” Conseguiu apenas dar um muxoxo ao ler o anúncio enquanto o pedaço de bife duro e sem óleo lubrificante rasgou goela abaixo.
A tarde aconteceu sem qualquer percalço e, findado o expediente, compareceu ao evento da turma, vestindo um costumeiro sorriso forçado emoldurado por um batom vermelho-carmim, que a deixava com mais cara de ânimo misturado à uma pitada de sensualidade sem precisar fazer grandes esforços. Tirou fotos a serem falsamente difundidas como momentos de felicidade, conversou amenidades, bebericou vinho, percebeu que já havia estourado não só sua paciência, mas o limite de calorias do dia. De certa forma esses momentos eram até bacanas, mas ela não combinava com eles, bem como sua maquiagem não combinava em nada com ela. Sentada à mesa daquele restaurante caro, rodeada por frivolidades, olhou à sua volta sem se sentir realmente pertencente. Discretamente passou a mão em seu pulso como se acariciasse sua âncora e dissesse: “estou com você.” Queria mesmo era estar com os cabelos sujos de sal e o corpo enfeitado com um biquíni. Mesmo que não fizesse isso nunca, a simples sensação de estar lá, perto do mar, enchia-a de saudade. Mirando o vazio à sua frente, deu um sorriso lateral de paz.
A semana se desenrolou, o calendário foi pouco a pouco engolido. Nada de anormal, porém nada de normal dentro do coração dela. Cumpriu ordens, foi a garota padrão que sempre esperavam que ela fosse, distribuiu cordialidade. Teve conversas banais com meia dúzia de pessoas, resolveu problemas esporádicos, desperdiçou mais cinco dias de sua história. O arrastar da rotina pouco a pouco a matava, e ela sentia isso. Viveu aqui e ali, do trabalho para casa e o caminho reverso. Sentiu solidão. Não tinha muita sorte no amor ou talvez ela não desse espaço para essa sorte ser feita. Desfez-se de várias relações. Era sozinha. Com uma pequena coleção de namoros fracassados, desistiu de dividir sua vida com alguém, até porque nem ela mesma sabia que vida era essa que merecia ser dividida. Do que gostava de verdade? No que era boa o bastante? Quanto dela realmente era verdade? Não conseguia ver com clareza do que se escondia, havia algo de obscuro em ser ela. Não formulava resposta alguma, só sabia que seu coração sempre a chamava de volta às águas.
Mais um sábado enfim chegou e com ele seu encontro com o oceano. Era sua rota de fuga preferida. A estrada que a separa dele finalmente encolheu. Desceu do carro, correu para areia, chegou à borda das ondas e, esbaforida, sentou. Fechou os olhos, respirou fundo e deixou a cabeça pender para frente, com o queixo quase colando ao peito. Estava encolhida e, embora não visse nada do que acontecia ao seu redor, estava em seu porto seguro particular, em uma redoma invisível que se colocava para não ter que pensar em nada, nem sentir, nem falar. Não sabia explicar o motivo, mas era mais feliz ali, naquele pedaço de chão coberto por ínfimos grãos, frente àquela infinitude de gotas salgadas reunidas. Toda aquela reunião de elementos minúsculos a completava e, em uma escala comparativa, faziam-na se sentir finalmente grande.
Permaneceu nesse estado meditativo por minutos – ou horas – até que um vento forte soprou seus cabelos. Um calafrio percorreu sua nuca, desceu por sua espinha, arrepiou os pelos de seus braços. Sentiu sua tatuagem pulsar. Uma gostosa sensação percorreu seu corpo e penetrou seu âmago. Há quanto tempo não sentia pequenos prazeres? Andava uma pessoa morna, nem quente, nem fria. Ela apenas estava, não era nada. Ela enfim despertou.
O céu, antes azulado, havia adotado tons de cinza e nuvens pesadas disputavam espaço. Ia chover forte e, ainda que devesse ir embora para se proteger em um local seguro, decidiu ficar. Mesmo que todos ao redor tivessem partido, não sentia medo, não queria mais uma vez fugir para algum abrigo qualquer. A energia desprendida pelos raios reverberava em sua pele, e o barulho dos trovões tocava seu interior tal como tambores chamando para dançar. Pegou seu celular e digitou rapidamente o pensamento que lhe percorreu. Salvou os seguintes dizeres para si – ou para o mundo – jamais esquecer: “Tenho vocação para a felicidade. É como se dissesse a mim mesma para prestar atenção nesse lugar lindo que vejo. Quando vêm as marés mais baixas da vida, são estes momentos prazerosos que alimentam a minha memória.”
E, em um ato de rebeldia, ela se levantou. Despiu-se de todas as vestes, jogou todos os pertences na areia. O cenário que para todos era ameaçador, para ela era proteção. Decidiu que queria molhar-se por inteiro. Atirou-se. Com o mar revolto, deu seu primeiro mergulho em anos, lançou-se de corpo e alma naquelas águas turbulentas. Era deliciosa a sensação. Mergulhou de novo e voltou para respirar. Arregalou os olhos e deixou-os arder com o sal. Não queria mais fechá-los. Submergiu outras tantas vezes. Brincou com as ondas, furou-as, mesmo as maiores que se formaram. Deu braçadas largas, foi cada vez mais para dentro. Nadou contra a maré. Até que a margem pareceu longe demais e ela se assustou. Nunca estivera tão longe. Seu coração apertou e pediu para voltar.
Ali não era lugar para se aventurar e ela sabia disso. Tal qual na vida, uma vez nas profundezas, é difícil voltar para onde o pé não sai da superfície. Tentou boiar e seguir a corrente, perdeu o controle das regras. Não a ensinaram o quão fundo se pode chegar e o quanto de fôlego é preciso para isso quando se resolve ser quem deseja. É preciso coragem, e essa nunca pode titubear. Ela nunca mais alcançou a superfície. Acostumada a ver a vida do raso, afogou-se em si, perdeu-se quando mergulhou e viu o quão profundo era seu interior. Faltou fôlego para lidar com sua vastidão. Sua âncora enfim achou seu lugar e fez morada ali, onde era ela mesma, onde ninguém nunca mais a faria ficar com a água só até os pés.
(Texto publicado na antologia “Pélagos – Contos do Mar” pela Editora Oito e Meio em Janeiro de 2020).