Sempre me disseram que a vida é um sopro e eu acabo de constatar. Infelizmente. Com o rosto colado nesse piso gelado e brilhoso do escritório, sinto meus minutos esvaírem ao mesmo tempo que meu cérebro me lembra rapidamente que já vivi tempo demais.
De repente sou eu, José Caetano Teorízio Junior, sendo chamado pelo nome literal por Dona Conceição, a professora de matemática que sempre dizia não restarem dúvidas do quão bom eu seria em contar as novilhas de meu pai. Eu devolvia o olhar a ela acompanhado do meu sorriso mais largo, esboçando um manancial de orgulho. Eu sabia que deveria transparecer isso, que deveria ser algo bom essa coisa de me acharem poderoso.
Nasci em uma família de fazendeiros. Meu pai, homem sério e impaciente, de quem eu herdei não só o sangue, mas a assinatura completa, me contou desde cedo que seria eu o próximo a calçar as tradicionais botinas de couro, bico e espora de ferro. Quem as tinha era o chefe da vez, o macho alfa. Nessa época inocente, eu ainda não sabia da importância de ser uma rubrica, gostava mesmo era de ser Caê, o menino que apanhava jabuticabas nos galhos mais altos. Essas frutas tão pretas, redondas, enormes eram as minhas preferidas. Colhia centenas, comia uma por uma e cuspia os caroços todos em um potinho, só para ter o prazer de contar depois que de todos os moleques, eu era sempre o campeão, o maior devorador. Saía dançando e cantando bem alto ao vento para que ele espalhasse por todos os cantos a minha mais nova vitória. Coisa de criança, coisa de vida, coisa simples que me fazia feliz.
Não demorou para eu ser chamado à responsabilidade. Meu apelido carinhoso pouco a pouco foi engolido pelas manhãs frias no curral, ladeado sempre por meu pai, suas botas e uma pinhola. Ele rodopiava as tiras de couro no ar e com um solavanco as fazia estralar muito alto, como se quisesse anunciar quem mandava ali. Foi assim que aprendi: mandava quem podia e obedecia quem era obrigado a tal.
Com os afazeres de herdeiro, perdi muitas das minhas manhãs em meio ao pomar. Sentia falta, desejava não ter todas aquelas obrigações, mas como já era lei, me acostumei a elas, afinal era de onde vinha o sustento e o poder. Nunca gostei de fato de ser o rei dos bois. Vez ou outra, quando ninguém estava olhando e eu parecia não aguentar mais, escapava para as antigas árvores de frutas e por lá rememorava, mesmo que por alguns minutos, aquilo que preenchia de fato meu ego: ser o campeão das jabuticabas.
As obrigações cresceram, eu cresci. Cheguei à idade adulta domando tudo, gados e peões. Na verdade, acho que aprendi a dominar mais gente do que bicho. Animal irracional é bravo, vai para onde tem que ir, mas não deixa de manifestar. Não teme. Já pessoas vão porque precisam ir, porque tem algo maior que as faz deixar de pensar e fazer o que precisa ser feito. Elas têm medo e esse se torna maior que todo o resto. Lembro da primeira vez que senti de verdade medo. Foi quando chegou vaqueiro novo, sua esposa e seu casal de filhos. Eu, no auge da adolescência, perdi a razão quando conheci o par de olhos mais redondos e escuros que já vi. Fiquei louco, perdi o foco. Queria deixar tudo para trás, queria fugir para algum lugar onde eu não fosse um viril sucessor e tudo aquilo que eu sentia pudesse ser dito. Tentei trancar no peito, mas meu pai percebeu que havia algo errado entre a casa grande e o que ele chamava de senzala. Onde já se viu o luxo misturar à lama? Eu nunca disse nada, ele também não. Não gritei nem quando o peso da sua pinhola estralou não só no ar, mas em mim. Me senti gente, mas queria ser como todos aqueles bois, que demonstram suas fúrias. Foi nesse dia que eu tranquei o choro em mim. Homem não chora, ainda mais um José Caetano Teorízio Junior.
Desse dia em diante nunca mais fiz nada que soasse diferente. Me tornei o herdeiro perfeito. Comprei e vendi tanto gado que uma mente humana comum jamais conseguiria contar. Por sorte a minha havia sido treinada por Dona Conceição, a professora do primário. Comprei terras novas, fiz dinheiro, muito dinheiro. Calcei minhas próprias botas, escolhi as melhores esporas, o bico mais imponente. Construí meu império. Casei-me com Maria Antônia Albuquerque, a rica moça com sobrenome importante da fazenda vizinha. Constitui família. Ao meu primeiro filho, que orgulhosamente nasceu macho, dei a estampa de Neto: José Caetano Teorízio Neto. Às duas meninas que vieram a seguir a mãe deu nomes religiosos: Maria do Rosário e Maria Imaculada. Viramos exemplos para os outros. Eu, o provedor, o pai rígido, o dono de tudo. Ela, a esposa, a matriarca católica influente na sociedade. Os filhos, todos estudiosos e cientes dos limites e das regras. Mas entre nós, silenciosamente, cada um sabia dos abismos que nos rondavam. Eu os criei com os mesmos buracos com o qual fui moldado. Construímos laços de sangue, mas não os de amor. Eu não vivi o amor. E em certa altura do campeonato eu os perdi, assim como meu pai também me perdeu.
Agora, na iminência da morte, olho para trás e sei que fui duro com todos, assim como fui comigo. Ninguém nunca ousou discordar de mim, por mais errado que eu parecesse. O doce e o amargo do poder se fundem tanto que fazem a vida acontecer. Ganhei muitos bens ao longo do caminho, perdi gente querida. Esqueci o olhar para o simples, para ver o que sorrateiramente come as coisas, as pessoas, eu mesmo. Eu poderia ter notado que a cadeira que recostei para tomar sábias decisões por tantos anos estava prestes a partir. Provavelmente cupins a corroeram vagarosamente por dentro como meus segredos adolescentes fizeram comigo. A madeira forte por dentro está podre, oca. Eu estou oco. Ela partiu, eu vou partir. Ao meu redor, papéis por todos os lados e dois seguranças, os quais eu nem me dei ao trabalho de decorar o nome, mas que guardam o ouro que tantos cobiçam. Além deles, só a velha secretária, talvez a pessoa com quem mais convivi nos últimos anos. Surpreendentemente me alegro com a única hora que jamais pensei que fosse bom misturar o sinhô e os criados. Estranhos, tão acostumados às minhas ordens, acompanham impassíveis os últimos minutos desse velho que agora parece morrer só, mas que na verdade parte levando consigo a eterna paixão pelos olhos de jabuticaba do filho do vaqueiro sem sobrenome que ele jamais esqueceu.